segunda-feira, 12 de junho de 2023

BOI MANSINHO E A SANTA CRUZ DO DESERTO (Grupo Clariô de Teatro) - Crítica de Edgar Olimpio para o site Revista Stravaganza - 2023

 

Teatro: Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto

O massacre de Caldeirão da Santa Cruz do Deserto foi um episódio significativo na história brasileira e convenientemente apagado, ao contrário, por exemplo, do perpetuado conflito de Canudos, no sertão baiano (1896/97). O inquieto Grupo Clariô de Teatro, que há dezoito anos desenvolve trabalhos para, sobre e com a periferia da cidade de São Paulo, decidiu revisitar os eventos ocorridos nos anos 1920 e 1930 na região de Cariri, no Ceará. A empreitada de reavivar a memória da chacina resultou em um documento histórico de valor inestimável.   

Com texto musicado e estruturado quase todo em versos do escritor cearense Alan Mendonça, direção e dramaturgia compartilhada por Naruna Costa e Cleydson Catarina, a atraente produção se movimenta inspirada na estética do Reisado Cearense. Trata-se de um folguedo popular em forma de cortejo com danças, músicas, brincantes e seres fantásticos, como os cômicos Mateus, o híbrido humano/animal Jaraguá, e Miolo, aquele que transporta sobre os ombros o boi cenográfico.

Para tonificar o sentido da montagem, o autor resgata e celebra ainda Maria do Araújo, a beata preta que em 1889 fez a hóstia virar sangue na frente de todo mundo e foi silenciada – o milagre, por sinal, inaugurou as romarias em Juazeiro do Norte. A trama gira em torno do beato paraibano preto José Lourenço, descendente de escravos alforriados, que fundou e liderou duas irmandades no interior cearense, destruídas em momentos diferentes por uma aliança entre a Igreja Católica, Poder Público, coronéis e latifundiários.

Envolvido por uma roda de jongo, de origem africana, que louva os antepassados e celebra a ancestralidade negra, o público ingressa na sala em estado de descontração. Nesse instante, o espetáculo abre alas para a entrada de mestre Joaquim, egresso do mundo dos mortos. Em livre criação, ele foi um menino sobrevivente do Caldeirão e seus descendentes irão desfiar sua trajetória ao longo do enredo. 

Recursos épicos são empregados para alternar o passado, ambientado no sitio Baixa Dantas e na fazenda Caldeirão Santa Cruz do Deserto, e o presente ficcional, em São Paulo. A ponte entre os dois períodos e geografias é um dos códigos para se compreender a peça, que estabelece um oportuno paralelo entre a repressão ocorrida naquela época e a perseguição nos dias atuais aos povos da Favela do Moinho, Pinheirinho, Aldeia Tekoa Piau, Yanomamis e tantos quilombos, aldeias e terreiros urbanos Brasil afora. Aqui, uma emblemática confraria de Boi-bumbá é cerceada pelo Estado em sua tentativa de existir na periferia paulistana. “A idolatria a um animal vai contra os princípios do legado cristão”, justifica Cabeção, representante do Poder Público, um estafeta de olhos esbugalhados e assimétricos. 

Em Baixa Dantas, o devoto Lourenço instaura uma comunidade religiosa fraterna, onde todo homem produzia conforme a sua capacidade e recebia de acordo com a sua necessidade. Eles ganham de Padre Cícero um boi zebu, batizado de Mansinho e venerado pelos seus moradores. Não demora e o culto ao novo hóspede passa a incomodar a província, avessa a esses “loucos desvairados de fanatismos”. Uma guerreira do reisado anuncia a conflagração iminente. Floro Bartolomeu, um político venal a serviço dos poderosos da vizinha Juazeiro do Norte, esquarteja o animal e prende Lourenço, solto dias após.     

Com a venda da propriedade pelos seus donos, e consequente expulsão, o beato e seu grupo se instalam na fazenda Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, cedida por Padre Cícero. O projeto autossustentável é reiniciado e a sua fama atrai levas de romeiros, deserdados, peregrinos e retirantes, pessoas em busca de uma saída da miséria.

A experiência outra vez acendeu o estopim de uma fúria punitiva por parte da elite local, que a via como uma nova Canudos, com iguais métodos e princípios, florescendo sob a liderança de um guia espiritual. Era necessário aniquilar a identidade daquela “sociedade comunista”. Em 1937, o Caldeirão foi invadido pela segunda vez e dizimado totalmente.  

A fusão entre o remoto e o contemporâneo, quando o capataz Floro Bartolomeu e o porta-voz do Estado repetem as mesmas falas e ações e dois bois são sacrificados sob o olhar resignado da população, é uma das boas sequências desembrulhadas. Várias outras têm similar impacto. Como a dos encantados José Lourenço e Maria do Araújo, que cruzam as fronteiras do tempo para celebrar a gênese de um boi. Ou o diálogo entre o discípulo Severino Tavares e o religioso, no qual o primeiro sugere reagir com violência às investidas dos poderosos. “Ou a gente mata ou a gente morre”, ele resume, uma fala prontamente refutada por Lourenço. Placas são fincadas na borda do espaço cênico com as palavras nascimento, batismo, morte e renascimento. Traço dos festejos do Boi-bumbá, a liturgia expressa o ciclo da vida.

Colheres, garfos, pratos, canecas, espigas de milho e ervas espalham-se na cena como símbolos que contrapõem a fartura produzida pelo povoado à seca que flagelou o Nordeste em 1932. Na passagem da carnificina do Caldeirão, um pequeno avião de madeira desliza no alto. Simultaneamente aviõezinhos de papel cruzam o ar, em alusão ao bombardeio aéreo sobre o lugar. Na morte de Padre Cícero, abre-se um guarda-chuva preto com chapéu cobrindo a ponta. A cela da prisão se transforma em boleia de caminhão na horizontal. Maria de Araújo é representada por máscara e corpo coberto de véu preto. Coronéis surgem com cabeça de papelão estilizado.

A direção cozinha habilmente esses ingredientes e consegue solucionar uma narrativa apinhada de informações e estímulos visuais e sonoros. Ao som de uma pluralidade de expressões musicais, a encenação mantém-se sempre fluída e ágil, desprende o grau de tensão dos acontecimentos e jamais se fecha sobre si mesma. Há uma luminosidade vital que emana do elenco, que se desdobra em vários personagens e narradores. Os atores extraem o encantamento estético do que é bruto com entusiasmo e competência. Não há destaques individuais, mas um conjunto homogêneo a serviço da mis-en-scène. Figurinos (Martinha Soares), maquiagem (Naloana Lima), cenário e iluminação (ambos de Alexandre Souza e Rager Luan), bonecos (Rager Luan) e o trio feminino de musicistas (Giovana Barros, Thaís Ribeiro e Naruna Costa) refletem e acentuam a representação da tragédia.   

A intrépida trupe demonstra dominar o material dramático. Faz um mergulho consciente no semiárido nordestino para recompor o genocídio de camponeses que queriam apenas viver de forma digna. Ao capturar o seu nexo e fundamento, a obra irradia questões universais e atemporais. É um teatro político, social, sagrado e lúdico, construído de modo direto, baseado em muita convicção e sem concessões.

(Edgar Olimpio de Souza – eolimpio@uol.com.br

(Foto Sergio Fernandes)

 

Avaliação: Ótimo

 

Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto

 

Texto: Alan Mendonça

Direção e Dramaturgia: Naruna Costa e Cleydson Catarina

Elenco: Alexandre Souza, Augusto Luna, Cleydson Catarina, Martinha Soares, Naloana Lima, Paloma Xavier, Rager Luan, Uberê Guelè e Washington Gabriel.

Musicistas: Giovana Barros, Thaís Ribeiro e Naruna Costa

Estreou: 18/05/2023

Teatro Sesc Pompeia (Rua Clélia, 93, Pompeia). Quarta a sábado, 20h30; domingo, 17h30. Ingresso: R$ 12 a R$ 40. Em cartaz até dia 11 de junho.

BOI MANSINHO E A SANTA CRUZ DO DESERTO - crítica de Valmir Santos para o site Teatro Jornal - 2023

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Crítica

Bordas e miolos da pólis e da história

9.6.2023  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Sergio Fernandes

Assim como a companhia Oficina Uzyna Uzona cumpriu um autodeclarado “desmassacre” em Os sertões, entre 2000 e 2007, quando montou cinco peças a partir da obra literária de Euclides da Cunha, pode-se dizer que o Grupo Clariô de Teatro levanta das bordas de Taboão da Serra com a zona sul de São Paulo, a seu modo, o “desmassacre” da Irmandade Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, no sul do Ceará, referente a ataques ocorridos entre 1936 e 1937, há 86 anos, quatro décadas depois da Guerra de Canudos, e revisitado no espetáculo Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto, uma bem urdida síntese de sua cosmovisão comunitária e artística esculpida em 18 anos de trabalho.

O Caldeirão é mais um dos embates na história do país protagonizados pelo povo desvalido e socialmente insatisfeito com latifundiários, coronéis e outros setores mais ricos e parasitas da sociedade. São episódios em geral dissolvidos a bala por forças militares, inclusive sob a complacência da Igreja Católica, mas cujas ressignificações regionais e mesmo nacionais não foram de todo apagadas. Apesar de instâncias subterrâneas – e outras nem tanta – desejarem o contrário. A exemplo da resistência e ataque ao Quilombo dos Palmares (Alagoas, 1695); os conflitos no sertão pernambucano na Serra do Rodeador (hoje Bonito, 1819) e na Pedra do Reino ou Pedra Bonita (São José de Belmonte, 1835-1838); a Revolta do Malês (Salvador, 1835); e a Guerra do Contestado (entre Paraná e Santa Catarina, 1912-1916).

Pois o Grupo Clariô dá a entender que pratica a arte do teatro ciente das variantes da luta e da festa. O genocídio de cerca de 800 civis, entre camponeses, trabalhadores rurais e romeiros, na cidade do Crato, por múltiplas forças de segurança do Estado, é contado, cantado e brincado com atenção diligente às circunstâncias na linha de tempo da irmandade liderada por beato José Lourenço e sua itinerância com seguidores pelos sítios Baixa Dantas (1894-1926), Caldeirão (1926-1936) e União (1940-1946), este já em Pernambuco, onde morreria na cidade de Exu, em fevereiro de 1946, vítima de peste bubônica.

A pilhagem exposta lembra a violência capturada por Picasso em Guernica, a pintura que veio a público em 1937 (sintomaticamente, o ano em que a irmandade do Caldeirão foi massacrada de vez), aludindo ao bombardeiro da cidade homônima pela Alemanha nazista, quando a Guerra Civil Espanhola estava em curso. Contudo, em contraste aos monocromáticos tons de cinza, preto e branco do quadro que denuncia o gravíssimo crime de lesa-humanidade, a montagem de ‘Caldeirão’ pelo Clariô explode em cores barrocas até em momentos de ritual fúnebre, sem ofuscar a veemência

Nascido na Paraíba, filho de pais negros alforriados, José Lourenço Gomes da Silva migrou para a região do Cariri cearense por volta de 1890, ocasião em que conheceu padre Cícero Romão Batista, ícone da religiosidade popular que já angariava fiéis fervorosos na vizinha Juazeiro do Norte. Foi ele quem conferiu a Lourenço o ofício de beato. Mas o que vem a ser um beato?

No artigo A destruição da terra sem males: o conflito religioso do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto (Revista USP, 2009), o professor e pesquisador Antônio Máspoli de Araújo Gomes diz ser comum no Nordeste a figura da beata ou beato:

O beato, sempre celibatário, faz voto de castidade, real ou aparente, e não tem profissão. Ele trabalha pela causa de Deus e vive da caridade dos bons e da exploração aos crentes. Veste-se à maneira de frade: uma batina de algodão tinta de preto, uma cruz às costas, um cordão de São Francisco amarrado à cintura, uma dezena de rosários, uma centena de bentinhos, uns saquinhos com breves religiosos e orações poderosas, tudo pendurado ao pescoço.

Em certa medida, a descrição confere com a postura e a jornada do personagem atuado por Alexandre Souza (Juão), também colaborador na concepção cenográfica. Uma presença contemporizadora, de falas e gestos meditativos.

A narrativa da peça alcança a periferia de acontecimentos ainda pouco repercutidos na historiografia do país. Expande mitologias e religiosidades com imaginários críticos às realidades sociais e políticas de antanho e à luz do presente. Fricciona contextos do choque bélico, político e religioso do Caldeirão de ontem com a Taboão de hoje. E, não menos importante, celebra os sentidos das manifestações sagradas e profanas a despeito da tragicidade imanente.


O atuante, bonequeiro, cocenógrafo e coiluminador Rager Luan como Miolo do boi, durante apresentação no Espaço Clariô em Taboão da Serra, no final de 2022              Foto: Sergio Fernandes

Ideias, corporeidades e cantorias compõem um mural cênico a propósito da opressão dos três poderes da República sobre as camadas populares, a reboque de bispos de plantão. Ou seja, os interesses movidos de acordo com o sarrafo da economia, notadamente as terras, desde a implantação das sesmarias pela colonização portuguesa.

A pilhagem exposta pela dramaturgia e encenação lembra a violência capturada por Picasso em Guernica, a pintura que veio a público em 1937 (sintomaticamente, o ano em que a irmandade do Caldeirão foi massacrada de vez), aludindo ao bombardeiro da cidade homônima pela Alemanha nazista, quando a Guerra Civil Espanhola estava em curso. Contudo, em contraste aos monocromáticos tons de cinza, preto e branco do quadro que denuncia o gravíssimo crime de lesa-humanidade, a montagem de Caldeirão pelo Clariô explode em cores barrocas até em momentos de ritual fúnebre, sem ofuscar a veemência.

Entre 1926 e 1936, o povoado abrigou milhares de trabalhadores dedicados à fé, à agricultura de sol a sol e à produção artesanal de roupas ou sapatos, sempre guiados pelo beato José Lourenço. A experiência coletiva, socializante, não demorou a atingir a autossustentabilidade.

Após dez anos de resistência popular, o assassinato de homens, mulheres, crianças e velhos sertanejos na região do Cariri cearense, como se disse, foi cometido por agentes militares sob as ordens de políticos, latifundiários, lideranças religiosas e imprensa parcial. Decerto o crime teve menos registro documental que a Guerra de Canudos, no norte baiano, 40 anos antes. Afinal, não havia um jornalista encaixado entre as tropas do exército como correspondente de jornal, caso de Euclides da Cunha ao reportar nas páginas de O Estado de S. Paulo e depois escrever a epopeia em livro publicado em 1902 com os segmentos A terra, O homem e A luta.

Narrar e fabular a propósito de acontecimentos ocorridos nas primeiras décadas do século XX, em área hoje distante cerca de 36 horas de carro ou a 2.800 quilômetros de Taboão da Serra, em apresentações para um público da região metropolitana paulista, essas são algumas das conquistas que o Clariô formula sob recursos épicos e bases da cultura popular lastreadas em princípios e espiritualidades de matrizes indígenas, africanas, afro-brasileiras ou mesmo católicas, sobretudo as que prezam bastante a mensagem igualitária da Bíblia, como a não turvar a diferença de classe.

Quando se aproxima uma lupa dos 18 anos de história do grupo não é difícil notar a inerência do signo e da sina migrante em suas raízes. Boa parte das pessoas que dão vida aos trabalhos do espaço cultural localizado na Rua e na Vila Santa Luzia tem pais, mães e avós descendentes do Nordeste do país. Assim, é da alma deslocar-se simbólica ou concretamente desde o chão de origem. Aliás, a trajetória desse coletivo é marcada pela inspiração em escritos de autores pernambucanos como Vital Santos (A árvore do mamulengo, 2002), Marcelino Freire (Hospital da gente, 2008), Miró de Muribeca (Urubú come carniça e vôa, 2011) e João Cabral de Melo Neto (Severina – Da morte à vida, 2015).

O desbravamento mútuo de territórios, vezos sociais de uma porção do espaço geográfico, e de territorialidades, entendidas como o conjunto de relações estabelecidas pela sociedade, configura o pulo do gato na trajetória do Clariô. Seu projeto mais recente aciona uma viagem Brasil acima, materializada dramaturgicamente no itinerário de sujeitos históricos transpostos para o universo das artes, bem como expõe o deslizamento de divisas e fronteiras geopolíticas, socioeconômicas e culturais nos “entremundos” que toca, além das abordagens ligadas às questões de identidade.

Coerência com a liderança do grupo nutrida por três mulheres negras: a codiretora, codramaturga e diretora musical Naruna Costa, postada na lateral da cena como uma das musicistas, com percussão e voz; a atriz, figurinista e produtora geral Martinha Soares; e a atriz e maquiadora Naloana Lima. Aliás, trio de cantadeiras urbanas que desde 2001 ancora, em paralelo, a pesquisa musical do grupo Clarianas.


Atuantes figuram como as forças militares a soldo de políticos, juízes, coronéis e imprensa determinantes para o genocídio de centenas de camponeses e trabalhadores rurais entre 1936 e 1937, na cidade do Crato, região do Cariri sul do  Ceará  Foto: Sergio Fernandes

Atitudes de racismo, misoginia, transfobia, xenofobia e colonialismo são percebidas ao longo da dramaturgia. Nessa toada, resultam ímpares as experiências de acompanhar Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto que inicia com uma roda de jongo envolvendo artistas e públicos numa esquina da rua do Espaço Clariô, em dezembro de 2022, na temporada de estreia, e agora no Sesc Pompeia, em que o batuque e a dança de roda de origem africana se dão próximos à paredes de tijolos aparentes na área externa do vasto teatro arquitetado por Lina Bo Bardi em edifício construído no terreno que nos anos 1930 abrigou uma fábrica de tambores de metal, de geladeiras e de querosene. Da centena de pessoas apinhadas na plateia em formato de arena, no galpão do grupo, à disponibilidade de sete vezes mais lugares se somados os dois lados do palco com fileiras ascendentes de poltronas de madeira e respectivos corredores centrais, em concreto também ele aparente, as desproporcionalidades de escala são como que parelhas àquelas de cunho espaciotemporais operadas na encenação e na dramaturgia: tudo se transforma.

Ou seja, o processo de transição do espetáculo a um espaço distinto daquele em que foi gestado demanda soluções outras, a exemplo do uso de microfone individual pelos atuantes e replanejamento de som e luz, dada a amplitude dos planos de ação (como no acesso às galerias laterais no teatro da Pompeia). A esses procedimentos técnicos, obviamente, nem sempre o público se atém, envolvido que pode estar pelo fluxo do que lhe é contado por meio de diálogos e tessituras outras, manejo de adereços e bonecos ou ainda de canções tocadas, entoadas e dançadas ao vivo. Por vezes, a dolência do aboio catalisa a cena.

De modo sincrônico, os diálogos e as canções são permeados pela prosa, combinando com o espírito adaptativo no cerne do texto de Alan Mendonça sob dramaturgia de Cleydson Catarina e Naruna Costa, ambos também codiretores, mais o apoio do ator e artista plástico Uberê Guelè. Mendonça e Catarina são colaboradores recentes do grupo e nascidos no Ceará. O primeiro segue lá e o segundo interage presencialmente com as teatralidades e filosofias do Clariô. Assim, é engenhosa a construção libertária dessa narrativa em muitas mãos que não renuncia aos fundamentos factuais e muito menos à presunção ficcional, tornando vívida a busca por justiça e igualdade, infelizmente ainda urgente.

Reflexo disso é a valorização, no enredo, da história de uma mulher que costuma ser relegada a décimo plano ou mesmo borrada dos registros oficiais. Em 1889, antes de beato José Lourenço fazer amizade com padre Cícero, a jovem preta Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo, depois beata Maria de Araújo, tornou-se símbolo da devoção popular porque, numa missa, quando o sacerdote levou a hóstia a sua boca, a pequena rodela de trigo teria se convertido em sangue, aos olhos de toda a gente, milagre repetido em outras comunhões. Milhares de romeiros acorreram a Juazeiro, mas o fenômeno foi acusado de fanatismo, pelos poderosos, e condenado pela Igreja, dobradinha típica quando o assunto são as manifestações populares. Se Cícero foi alçado a Messias, e Juazeiro, à Nova Jerusalém, Maria de Araújo resultou “silenciada e condenada ao esquecimento”, sentença a que a montagem contraria em distintas passagens na forma de uma boneca extensiva ao corpo da atuadora Martinha Soares, na maioria das vezes.

Nove intérpretes-criadores e três musicistas comungam as encruzilhadas que o texto propõe. No galpão-sede que reconhecem como a palma da mão, a atuação intercala fluências e quebras na mesma língua das imbricações espaciotemporais. Menos é mais. No teatro da unidade do Sesc, oscilam certos trechos de falas, possivelmente abduzidos pela vastidão, profundidade e pé-direito alto. Esses breves desvios não atravancam fruir a dramaturgia processual pródiga em simetrias. Como na politização da brincadeira do boi entrelaçada a adventos de nascimento, batismo, morte e ressurreição.

Uma fabulação, diga-se, sofisticada. Condicionantes do que é atualidade e do que é antigo permitem desfraldar o potencial do que é renarrado sob a ótica da criticidade. As topografias vão e vêm, tal personagens, figuras ou arquétipos do bumba meu boi, cheios de cores, movimentos e sonoridades. Como o Miolo (pessoa a dançar oculta dentro da armação artesanal que conforma o corpo do animal), o bonecão Jaraguá, os Mateus em chave de palhaçaria Cravo Branco e Flor do Dia, a Dona do Boi e até Exus e uma Guerreira de Reisado, outro auto popular, dando vida ao brinquedo e seus brincantes, que ora pisam a rua urbana, ora o solo rural.

Sobrevivente do criminoso desterro do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, mestre Joaquim aparece como a criança que foi e nesse lugar nasceu, ou como benzedeiro, brincante e avô nos rincões da capital paulista, a transmitir aos netos os tempos saudosos e doloridos, enquanto os descendentes reivindicam justamente o direito de jogar com a tradição do boi no asfalto.  

Já o vilão Floro Bartolomeu é introduzido como o médico e político-mor das forças reacionárias, leiam-se os “poderosos de alpendre, batina e farda”, segundo pontuam Romeiros e Guerreira, uníssonos. Ele vai destroçar o boi zebu preto e adorado por fazer jus ao nome de Mansinho – razão de padre Cícero dar o seu bicho de presente ao beato e discípulo e seus devotados, dentre os quais “Havia quem seguia pelo rosário da santa virgem, havia quem seguia pelo pirão. E foi juntando gente, e gente é semente de plantação. Logo, logo era terra florida em reza, trabalho e pão”, como rima um dos narradores.


Washington Gabriel como o médico, político e cruel Floro Bartolomeu, um de seus personagens, cujo contraponto cômico e lírico se dá como Cravo Branco, um dos Mateus do bumba meu boi.                            Foto: Sergio Fernandes

No campo das atuações, a tônica é a energia vital do conjunto, a musicalidade e as ações de cortejo. Seria injusto, contudo, não pontuar a desenvoltura de Washington Gabriel com as “máscaras” de Floro Bartolomeu e Cravo Branco, no diapasão vilania e lirismo. E destacar ainda o recurso de janelas abertas na dramaturgia a relatos que se supõem autobiográficos e redimensionam o trabalho de intérpretes como Guelè, Catarina e Paloma Xavier, de distintas gerações.   

Convém reforçar que o texto cumpre um primoroso roteiro colado à natureza dos fatos, vide a morte de padre Cícero em 1934, a consequente mudança de eixo de romeiros da sobrepujante Juazeiro para o sítio Caldeirão, tornado epicentro pelo culto ao Boi Mansinho em pleno terreno de formação rochosa onde a seca foi vencida e passou a ser cultivável graças ao lençol freático da área. Um Caldeirão como que abençoado com uma espécie de poço permanente, farto em água, daí a sabedoria popular que assim designou o vilarejo no sopé da Chapada do Araripe.

Em tempo: padre Cícero era dono de muitas propriedades, até do terreno do Caldeirão, para onde havia encaminhado o beato José Lourenço, a quem admirava a postura conciliadora e empenhada no bem-estar do povo. Como detalha um dos narradores:

A igreja quer, e quer ligeiro, as terras do Caldeirão, passadas em papel do Padre Ciço Romão aos Padres Salesianos, sem nem querer saber do povo que morava lá, que sobrevivia lá, que dividia tudo o que produzia lá…

Para correr logo com o beato do Caldeirão, ajuntado com sua gente, espalham entre a sociedade dos poderosos e das famílias cristãs de nome, dinheiro e terra que o beato era comunista, herege e promíscuo.

O bispo do Crato, soprado pelo diabo, disse que não pagava era nada sobre o que os romeiros fizeram de coisas nas terras e mandou a polícia pra cima do beato e seu povo e abriu a porteira da matança.

De índole pacifista, beato José Lourenço se esquivou em fuga de todos os sítios em que foi escorraçado com seus seguidores. Havia, porém, aqueles que não recuavam. Como o mensageiro Severino Tavares, que agregava romeiros para a vivência religiosa comunitária – outro nome secundário que ganha relevo na trama. Ele conspirou para o revide após a destruição do sítio em setembro de 1936. “A verdade é de quem manda, beato, e é coisa de degola. Ou a gente mata ou a gente morre. A peleja não tem como não ter…”, alega a José Lourenço, então refugiado. Tavares bolou estratagema e juntou homens para matar um tenente e parte de seus soldados em outra região serrana chamada Cruzeiro. Foi o estopim para que o Estado escudado por coronéis, bispo, juízes, políticos e imprensa se empenhasse no massacre que aconteceu no ano seguinte, 1937.

Na voz de Romeiros e Guerreira:

E surgiram tropas militares vindas de todas as partes do estado para invadirem a região. Aviões avoam por sobre a serra largando bombas nos redutos e pipocando a matadeira em qualquer vestígio de gente. Os soldados eram só ódio e os diabos riam do pássaro malvado cuspindo bombas, espalhando morte e destruição, medo e desespero, manchando toda a terra com o sangue do povo do Caldeirão.

O atuante e corresponsável pela cenografia Alexandre Souza (Juão) como beato José Lourenço
Alexandre Souza (Juão) atua como o beato José Lourenço, personagem negro que transmite em cena uma presença contemporizadora, de falas e gestos meditativos; artista também colaborou na concepção cenográfica   Foto: Sergio Fernandes

A encenação concebe essas guinadas épicas em comunicação direta com o público. Não se está diante de uma aula de história, mas de uma criação cênica de essência popular, disposta a encarar de frente a complexidade do que narra e, quem sabe, despertar mudanças de pontos de vista. Ir ao encontro do Grupo Clariô, dentro ou fora de casa, implica ciência de que “A sua presença alimenta a alegria do lugar”. E assim encantam esses artistas na acepção mais bela e pungente do cantar e contar.

Mudando do palco para a tela, a principal fonte de pesquisa no processo de construção da obra foi o longa-metragem documentário O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto (1986), de Rosemberg Cariry, que abre com o seguinte enunciado:

Dedicamos este filme à memória dos camponeses que morreram lutando pela justiça e pela igualdade. Também para os vivos que da boca do último morto resgataram a palavra liberdade e na terra iniciam a semeadura da vida.

A certa altura do filme que situa como beatos e cangaceiros (leia-se o bando de Lampião) lideravam massas oprimidas contra a infelicidade e a fome, diz o locutor:

A falta de democracia no país, a manipulação alienadora e a desumana exploração financeira retiraram das romarias por muitas décadas a expressão de rebeldia popular. Move-se impiedosa a indústria da fé e da miséria.

Produzido nos estertores da ditadura civil-militar (1964-1985), “feito da impossibilidade de fazê-lo”, como afirma Cariry, o documentário prima pelo testemunho de sobreviventes e chega a entrevistar dois generais envolvidos com o massacre à época. A arte do teatro também se dispõe a presentificar um tanto dessa história, como faz o Clariô, a atriz e diretora Maria Joaquina Carlos em Reza de Maria (2017), no Crato, e o grupo Teatro Máquina em Nossos mortos (2018), em Fortaleza.

.:. O documentário O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto (1986), de Rosemberg Cariry, está disponível no canal da Mostra Afrolhar, que abordou e exibiu o filme na live ‘Arte sem fronteiras – A responsabilidade do artista’, em 24 de novembro de 2022. A transmissão do longa-metragem inicia na minutagem 1:20:40.

Serviço

Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto

Quarta a sábado, 20h30; domingo, 17h30. De 18 de maio a 11 de junho de 2023

Sesc Pompeia – teatro (Rua Clélia, 93, Água Branca, tel. 11 3871-7700

R$ 40,00 (inteira), R$ 20,00 (meia) e R$ 12,00 (credencial plena). Vendas online e presencial nas unidades Sesc

110 minutos

14 anos

A temporada de estreia aconteceu de 24 de novembro a 11 de dezembro de 2022, no Espaço Clariô (Rua Santa Luzia, 96, Vila Santa Luiza, Taboão da Serra). Quinta a domingo, 20h, entrada gratuita. Livre.

Victor ParisO multiartista cearense Cleydson Catarina, atuante, codiretor e codramaturgo de ‘Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto’, com Naruna Costa

Ficha técnica

Texto: Alan Mendonça

Direção: Naruna Costa e Cleydson Catarina

Intérpretes criadores: Alexandre Souza (Juão), Augusto Iuna, Cleydson Catarina, Martinha Soares, Naloana Lima, Paloma Xavier, Rager Luan, Uberê Guelè e Washington Gabriel

Stand-in: Mônica Augusto

Colaboração de texto: Uberê Guelè

Dramaturgia: Naruna Costa e Cleydson Catarina

Direção musical: Naruna Costa

Arranjos: Giovani Di Ganzá e Naruna Costa | Giovana Barros e Thaís Ribeiro

Contribuições de Augusto Iúna e Rager Luan

Trilha gravada: Maurício Badé

Musicistas: Giovana Barros (violino, rabecas e efeitos), Thais Ribeiro (flauta transversal, pífanos, sanfona e percussão) e Naruna Costa (Percussão e voz)

Pesquisa e orientação estética: Cleydson Catarina

Preparação corporal: Cleydson Catarina

Assistentes de corpo: Paloma Xavier e Washington Gabriel

Figurinos: Martinha Soares

Maquiagem: Naloana Lima

Cenário: Alexandre Souza e Rager Luan

Iluminação: Rager Luan e Alexandre Souza

Operação de Luz: Zerlo

Bonecos: Rager Luan

Adereços: Uberê Guelè, Rager Luan e Cleydson Catarina

Comunicação: Bora Lá Agência de Comunicação e Marketing Popular

Camila Ribeiro (artista convidada) > Identidade visual + Ju Dias

estratégia geral e atendimento + Venuz > Redação e social media 

Fotografia: Sérgio Fernandes

Costureira: Maria Margarida Duarte Britto

Assessoria de imprensa – Temporada Sesc Pompeia: Rafael Ferro

Realização: Grupo Clariô de Teatro

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

FESTA DE LANÇAMENTO DO CLIPE: 
PEDINTE
DIA 28/11 - 21 HORAS 
NO ESPAÇO CLARIÔ! 
Dia 28/11 acontecera o lançamento do primeiro clipe das Clarianas
A música PEDINTE foi filmada no Espaço Clariô, sob a direção e Kenny Rogers. 
Semanas de produção intensa,  que resultaram em um encontro valoroso que gerou nosso primeiro clipe. 
Aqui agradecemos à todos os parceiros e parceiras que contribuíram direta e indiretamente com mais essa criação, que só existe porque tem braços de todos os cantos, e cantos de todas as cores. 
Venham celebrar com a gente. Agradecer e abraçar essa nossa oração. 
A festa, apesar de ser na sexta feira, também celebra o ultimo quintasoito do ano: NEGRAS VOZES e vai contar com a participação muita gente!
Alguns já estão até confirmados: 

ALAFIA
VITOR TRINDADE

CAPULANAS
PAULA DA PAZ COM GUNNA VARGAS
LENNA BAHULE
MANOEL TRINDADE
SANDRO LIMA / GRUPO OUROECHÁ
RICARDO DUTRA
DUO RAIZA- GANZÁ
SAPATO BRANCO (CHORINHO)
GUMBOOT DANCE BRASIL
GRUPO DEODARA
NLÁ PERCUSSA MADE MUANA
CAMILA BRASIL

BORA? 
ENTRADA FRANCA!
28/11
SEXTA-FEIRA - 21HORAS 
ESPAÇO CLARIÔ: 
Rua Santa Luzia, 96 - Vila Santa Luzia
11 4701 8401
OUÇA PEDINTE: